quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Tempo, espaço, cidade


A modernidade pode ser definida como a história do tempo, ou melhor, a modernidade é o tempo em que o tempo possui uma história. Antes que físicos e filósofos começassem a definir o tempo e o espaço em termos científicos, provocando assim a sua separação. Tempo e espaço estavam intimamente ligados dentro da percepção cotidiana, sendo assim “longe” e “tarde” “cedo” ou “perto” significavam a mesma coisa, ou seja, o esforço necessário para que um ser humano percorresse uma certa distância, ou para se cumprir uma certa tarefa. Isso se devia ao fato de que as ferramentas empregadas pelos homens, estavam intimamente atreladas ao seu próprio corpo. Tornando as noções de tempo e espaço intimamente ligadas aos processos naturais. Na chamada era do wetware, humanos e animais faziam os esforços e impunham os limites. Assim, nobres poderiam viajar com mais conforto, não seriam capazes de vencer distâncias numa velocidade maior do que qualquer plebeu. Sem a necessidade de uma medida real do tempo, e por conseqüência, espaços menos controlados. Num período que pode ser definido como a pré-história do tempo.

O advento da modernidade marca a dissociação entre tempo e espaço. A invenção de máquinas capazes de acelerar a produção e o movimento tornou o tempo o elemento dinâmico da relação espaço-temporal. Essa capacidade ampliada de trabalho e deslocamento deu início ao período que Bauman denomina como modernidade pesada. Um período marcado pela dominação do espaço, que para atender as novas necessidades da produção deveria ser subordinado à técnica. A era dos Estados fortes, controladores e interventores, um capitalismo de produção, onde fábricas cada vez maiores eram o símbolo da sua força.

A modernidade pesada era, afinal, a época de moldar a realidade como na arquitetura ou na jardinagem; a realidade adequada aos veredictos da razão deveria ser “construída” sob estrito controle de qualidade e conforme rígidas regras de procedimento, e mais que tudo projetada antes da construção. Era uma época de pranchetas e projetos – não tanto para mapear o território social como para erguer tal território até o nível de lucidez e lógica que só os mapas são capazes. Era uma época que pretendia impor razão a realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de todo o comportamento contrário à razão tão alto que os impedisse. Em razão do decreto, negligenciar os legisladores e as agências coercitivas não era, obviamente, uma opção. A questão da relação com o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formação; de fato, uma questão de vida ou morte. (BAUMAN)

O fim da Segunda Guerra Mundial é um marco para importantes mudanças dentro do sistema capitalista, mudanças que não diziam respeito apenas à nova ordem bi-polar, trata-se do domínio cada vez maior do homem sobre o tempo. A revolução tecnológica que desencadeou a chamada Terceira Revolução Industrial, mudou completamente os rumos da humanidade. Com o advento da Era da Informação e a ascensão do capital financeiro monopolista, o tempo chegaria a quase instantaneidade, uma vez que os dados são capazes de viajar na velocidade da luz, sendo assim, o deslocamento perde importância, o domínio do espaço deixa de ser essencial. O poder se transforma em uma entidade nômade e seus princípios estratégicos preferidos são a fuga, evitação e o descompromisso, sendo que sua condição ideal é a invisibilidade. Dando a modernidade seu novo caráter leve, ou nas palavras de Bauman, fluida.

Bauman sugere que uma maneira de se compreender essas fases da modernidade, seria através de seus medos. Orwell e Huxley eram visionários, nas distopias criadas em suas maiores obras (1984 e Admirável Mundo Novo), conseguiram captar os maiores temores dos homens de sua época. Tais temores residiam nessa potência totalitária própria da modernidade pesada, mundos de vigilância, de controle absoluto, da dissolução completa das liberdades individuais. Hoje os medos são outros, o Grande Irmão já não assusta mais ninguém, justamente porque o Estado já não canaliza mais tantas funções, nos tempos da modernidade líquida somente o indivíduo carrega o peso de suas angústias e necessidades, fato que os prendem cada vez mais ao solo, encontrando consolo na liberdade consentida de consumir. Nessa nova era de incertezas, onde as narrativas de um mundo melhor falharam, os maiores medos residem na defesa da propriedade, em gestos que demonstram um medo das ruas cada vez maior. As teletelas de Orwell não voltam mais seus olhos para as salas de estar, e sim para as ruas escuras e perigosas.

Entre os modelos de planejamento urbano que competem para assumir o trono deixado pelo projeto modernista está o chamado planejamento estratégico. Modelo este difundido no Brasil em ação combinada de agências como a Habitat e por consultores internacionais, catalães em sua maioria, possuindo como um dos expoentes máximos desse novo conceito de planejamento urbano a cidade de Barcelona.

Tal experiência tem origem nas técnicas de gestão empresarial, com a justificativa de que as cidades de um mundo globalizado passam pelos mesmos problemas e devem ser administradas com a mesma lógica de uma empresa. Ou seja, as cidades devem tornar-se competitivas com o intuito de atrair investimentos e passar para trás suas concorrentes.

A cidade se vende no sentido em que busca se adequar as necessidades do capital especulativo, criando toda uma infra-estrutura para esses consumidores em potencial enquanto a grande massa de excluídos é tratada como problema paisagístico em seus postulados. Transforma-se em empresa quando se apropria de técnicas de marketing e business com o intuito de atrair mais investimentos e enxugar gastos em setores “improdutivos” como saúde e educação, atuando apenas a favor do capital e por fim apropria-se da imagem de pátria quando se apóia na figura de lideranças carismáticas, matando a cidadania quando a contestação e o posicionamento são banidos da esfera administrativa municipal.

Enquanto a visão moderna de planejamento urbano possuía como alicerce o taylorismo e sua lógica tecnicista, funcionalista e racional, os novos “gestores da cidade”, se apóiam em doutrinas como o toyotismo criando uma maior alienação em relação ao espaço, as relações sociais urbanas deixam de ter importância, a premissa é tornar a cidade rentável a qualquer custo, função esta delegadas aos citadinos.

Nessa nova concepção de cidade, a polis (lugar de confrontos de idéias, berço do cidadão, onde ocorre a real interação humana com o espaço) perde terreno para a city (sede de grandes investimentos, lar dos citadinos, dóceis autômatos que sob a liderança de figuras carismáticas exercem suas funções pelo bem da city).
No entanto, algumas formas de resistência ainda sobrevivem, na medida em que os habitantes da cidade lutam pela cotidianização da política, gerando um processo de reconstrução e reapropriação dos espaços públicos, norteando assim uma nova alternativa, que apesar de ainda não estar organizada não deixa de ser uma saída.


Fonte: Do TFG Kaozmatron - é preciso ter kaos... de Régis Alberto, vulgo Saddan. 

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